sexta-feira, 18 de março de 2011

Site ONGCIDADE.ORG: A transformação democrática do Estado para além dos espaços de interação com a sociedade

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Sérgio Baierle, Cidade
2011-03-11 16:16:00


O Seminário Internacional “Sistema Estadual de Participação: Bases Conceituais”, realizado em Porto Alegre nos dias 24 - 25 de fevereiro de 2011, trouxe poucas novidades por parte dos painelistas convidados. Como praticamente não houve oportunidade de debate e os representantes do governo deram poucos indicativos sobre o futuro desenho da participação no governo estadual, por enquanto ficamos sem saber o que vai ser proposto.

A fala do Governador Tarso Genro, embora curta, surpreendeu, ao colocar o déficit de conteúdo, a inefetividade do Estado Democrático de Direito como principal desafio do presente para a democracia participativa. Neste sentido, a ênfase predominante dos painelistas nas várias alternativas de desenho institucional possíveis não contribuiu muito para a questão trazida por Tarso Genro. Não parece muito produtivo esperar que a multiplicação de opções de participação possa dar conta da inefetividade do Estado, do seu déficit de conteúdo. Depois de centenas de conferências, congressos, fóruns, conselhos, consultas, orçamentos participativos, tudo indica que não é participação que está faltando, embora sempre se possa dizer que as grandes massas populares ainda permanecem majoritariamente indiferentes às fórmulas da democracia participativa, a não ser quando compulsoriamente convocadas.

A questão da inefetividade do Estado Democrático de Direito parece ser de outra ordem e pouco se conseguirá avançar na consolidação da democracia participativa como novo regime político enquanto não se transformar a democracia enquanto forma de Estado. Esse é o ponto, as experiências de orçamento participativo chegaram na metade do caminho, mas está faltando a outra metade. Precisamos ir além da democracia enquanto técnica de governo. Nem o Estado, nem os modelos de cidade e de desenvolvimento foram transformados de forma coerente com os espaços institucionais e não-estatais de participação. Ao contrário, internamente à máquina pública o que temos é, de um lado, a velha estrutura burocrática tradicional e, de outro, a reforma estilo Bresser Pereira, nossa adaptação local das reformas de Reagan e Thatcher: privatização, descentralização, focalização. O governo Lula esboçou um início de reforma em 2003, mas acabou sucumbindo ao que já vinha da gestão anterior, com a segregação entre carreiras típicas de Estado (fisco, judiciário e forças armadas) e servidores em geral, redirecionando os segundos progressivamente para o modelo privado de contratação via CLT. Mesmo uma via reformista precisa implicar em algum tipo de compromisso. A CLT foi a expressão reformista de um Estado de Compromisso na Era Vargas. Qual o compromisso que temos hoje, o turbo-capitalismo desenvolvimentista com políticas sociais? É esse o limite? Qual o sentido da participação quando o principal já foi decidido?

Diferentemente do projeto democrático-participativo, o projeto neoliberal se concentrou primeiramente e principalmente na reforma do Estado sob a hegemonia dos grandes grupos financeiros. A nova gestão pública trazida por Reagan e Thatcher teve dois eixos estratégicos: (a) relançar o capitalismo a partir da expansão financeira privada em escala planetária, turbinando a produtividade do trabalho; e, (b) curto-circuitar o compromisso social-democrata (cuja agonia ocorre hoje na Europa) e depurar o Estado, na medida do politicamente possível, de tudo que não agrega valor ao capital ou apresenta baixa relação custo-benefício. Entretanto, a conivência entre alta finança e Estado de Exceção Fiscal foi tão explícita que acabou gerando o ódio popular aos seus “heróis” (Collor, Fujimori, Menem, etc.). Esse foi o “erro” da primeira fase do neoliberalismo, ainda muito preso à idéia de governabilidade a qualquer preço (recordar do discurso do “mercado”, de que com a Constituição de 1988 o país teria ficado ingovernável, com juros limitados a 12% ao ano, saúde pública universal e gratuita, expansão do sistema previdenciário, etc.). 

A partir do final dos anos 90, com as recorrentes crises sistêmicas do capitalismo, vem se consolidando uma nova fase, a era do neoliberalismo social, com o conceito de governança e todos os seus adjetivos glamourosos: boa, social, solidária, participativa, democrática, sustentável, responsável, corporativa, financeira, etc. Essa fase, como pretendido por organismos multilaterais e agências de desenvolvimento, criou um “clube de convergência” (1), que age para obter a conformidade de todos os governos envolvidos como adesão às melhores práticas (best practices compliance). 

Nessa nova fase, é preciso derrotar os movimentos sociais no seu próprio terreno, a organização de base das classes populares. Está aí o sindicalismo de resultados e o argumento cínico de que é melhor viver das sobras da antropofagia capitalista do que ousar qualquer outra coisa. Está aí também a novíssima indústria da funcionalização da pobreza, com suas fundações assistenciais privadas, suas isenções fiscais e seu assédio aos serviços públicos ainda não terceirizados.  Como após a crise econômica de 2008-2009 se tornou insustentável o discurso de que o Estado atrapalha o desenvolvimento, sobretudo depois que os grandes bancos tiveram que se socorrer de generosas doses de liquidez fornecidas pelos bancos centrais, é preciso costurar na institucionalidade estatal e na sociedade a convicção de que só com a “união” de todos é possível assegurar a competitividade global de um país, província ou cidade: aceitando a flexibilização das leis trabalhistas, as sucessivas reformas previdenciárias (vem mais uma aí), os recorrentes cortes orçamentários e a absoluta priorização dos interesses do mercado. Em troca temos coisas como “a cidade cuidando da cidade”, um conjunto combinado de políticas assistenciais e ações filantrópicas privadas para garantir a funcionalização da pobreza. Num contexto desses, a palavra inclusão não tem mais nada a ver com efetiva participação política, enquanto incidência na definição do pacto básico de poder que organiza a sociedade. Inclusão passa a significar, muito pragmaticamente, autogestão assistida da pobreza familiar pessoal: acesso ao mercado de trabalho (conseguir trabalho virou privilégio), combate à pobreza extrema dos grupos mais marginalizados através de bolsas vinculadas a comportamento, universalização do acesso aos serviços (ainda que precários), bem como direito a ter representantes junto ao atores relevantes na gestão das políticas de inclusão (governo, setor privado, ongs, fundações sociais, ministério público, et.). A isso se dá o nome de boa governança. 

A Frente Popular (PT e aliados) não chegou a produzir uma alternativa efetiva de transformação do Estado a partir do ideário dos movimentos sociais (reformas agrária, urbana e poítica; sustentabilidade ambiental e defesa dos bens comuns; economia solidária e autogestionária;  liberdade e autonomia sindical; democratização dos meios de comunicação; novas culturas e políticas de identidade e reconhecimento, etc.). Embora tenha ensaiado, sobretudo aqui no sul. Tampouco consolidou um modelo de desenvolvimento que não reproduza no país a tradicional modernização seletiva (2), em que às classes populares se reserva apenas o papel de consumo de massa e subordinação política. Seria preciso reinventar a gestão pública, raspando no tacho dos esboços reformistas dos anos anteriores e coerente com a radicalidade dos movimentos sociais do século XXI, onde o questionamento dos conteúdos e dos sentidos amplia as lutas sociais para muito além da redistribuição da riqueza. O problema é como produzir um trabalho dessa envergadura no âmbito de um bloco de poder pautado pela coalizão e a convergência, não mais pela mobilização e pressão popular. De onde viriam a vontade, os fins e os meios?



(1) Vide Paul Cammack, Competitiveness and Convergence: the Open Method of Co-ordination in Latin America, Manchester Metropolitan University, Papers in the Politics of Global Competitiveness, n. 5, 2007.

(2) Jessé Souza, A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2000.


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